To-da vez que eu sou impactada pela notícia da morte de alguém, eu fico muito brava. Antes de ficar triste, fico brava. Como assim morreu??? A pessoa nem buscou a roupa na lavanderia, tinha deixado a pizza de ontem na geladeira pra comer na volta, teria apresentação na escola do filho semana que vem. Como assim morreu??? Mandou um “depois te ligo” ao recusar a ligação do melhor amigo, ficou de levar a sobremesa pro almoço de família no domingo na casa dos pais. Pra que mandou os documentos do imposto de renda, pagou todas as contas no último dia 5 e não faltou nenhum dia na academia essa semana? Morrer tinha que ter hora marcada, pra dar tempo de dizer quem fica com a coleção de carrinhos e quem fica com os discos, pras pessoas saberem que o que não foi dito precisa ser dito até sexta-feira, 15h34, caso contrário vai ficar pra outro plano ou outra vida. Tinha que ter hora marcada pra saber a hora de pedir demissão e parar de adiar encontros e coisas que fazem o coração bater mais rápido. Dane-se o emprego que só serve pra pagar contas, se a gente souber quais serão as últimas contas a serem pagas, a gente organiza melhor isso aí. Se a gente souber quando os nossos se vão, a gente ajusta o calendário, tenta deixar aquela semana livre, tenta adiantar a data do casamento, faz uma festa de arromba 15 dias antes pra garantir que o estoque de lembranças vai estar bem farto quando não der mais pra criar nenhuma nova.
Aí sempre tem alguém pra dizer “viva todo dia como se fosse o último” como remédio pra essa sensação de frustração quando o último dia chega sem aviso, mas meus amigos, não dá pra viver todo dia se fosse o último. Se meu último dia fosse semana que vem, eu não pagaria mais nenhuma conta, largaria o emprego, ignoraria os prazos, tiraria dois dias pra falar pra todo mundo o quanto amo, desligaria despertador, meu filho ficaria até lá sem ir pra aula pra eu ficar cheirando ele dia e noite, compraria passagens só de ida, não lavaria a louça nem a roupa, passaria tudo no débito. Como é que pode ser possível viver todo dia como se fosse o último se a gente vive nessa eterna lista de afazeres tentando dar check no máximo de coisas pra não acumular no dia seguinte? Não dá pra viver como se fosse o último dia enquanto a gente estende a roupa no varal, faz o almoço, emenda uma reunião na outra e tem que parar pra fazer a contabilidade do mês.
A gente pode sim tentar não demorar tanto pra fazer o que ama, falar o que quer e sente pros nossos afetos, tirar o melhor proveito dessa vida, mas a gente não tem como viver todo dia como se fosse o último, o sistema não deixa e se todo mundo entrar nessa dinâmica, o caos se instala, a praia lota, não aparece ninguém pra trabalhar, as passagens acabam, ninguém se organiza. Por isso a gente deveria ter data de nascimento e de morte, acho sim, aí o cronograma a gente ajustava bonitinho. “Po, você só vai morrer daqui 29 anos, fulano morre mês que vem, não vou na sua festa, tá? Depois a gente marca, agora preciso ir com ele na cachoeira que íamos quando crianças”. Fácil? Não seria fácil, mas a gente deixaria menos pontas soltas por aí e o arrependimento bateria menos.
“Hariana, aceita, morrer é parte da vida, natural, nossa única certeza”. Ok, pode ser, mas ainda assim, morrer é escroto.
Eu tinha perdido minha senha no WordPress e nem sabia disso!
Recebi seu texto em meu e-mail, e não consegui não vir aqui pra curtir e comentar!
Que texto incrível! meus parabéns!
E concordo com tudo o quê você disse, em gênero, número e grau.
Meu pai se foi ano passado. teria ficado mais tempo falando com ele, se soubesse que no dia seguinte ele não estaria mais por aqui.
Abração!
Escroto demais! [mas que alegria receber notificação de publicação aqui de novo! <3]
Sei nem mensurar o quanto é escroto!
[que alegria receber notificação de nova publicação aqui! <3]