Amiga, me desculpa, eu não sabia

O casamento da minha amiga. Uma casa cheia de amigos pra comemorar! 1 ano e 4 meses do primeiro filho de uma das minhas amigas. A segunda a ter filho em uma casa cheia de adultos curtindo a vida sem filhos e sem saber o que era ter um filho. Festa, bebida, pizzada, violão, churrasco, casamento, dança! Minha amiga tinha um filho de 1 ano e 4 meses. Ela estava lá, dando pé, feliz por estar em um momento tão especial com a gente, mas hoje eu sei que a banda que tocava pra ela não era a mesma que tocava pra gente. Eu lembro de vê-la no pé da cama chorando de exaustão. Morro de arrependimento de não a ter acolhido como ela precisava e merecia, mas eu me perdoo, eu não tinha a menor ideia da profundeza dos sentimentos dela. Eu não tinha a menor ideia. 

Éramos madrinhas, todas foram se arrumar juntas no local do casamento, mas como fazer isso com um bebê, né? Ela ia depois, decidi que iria depois com ela. A casa vazia, ela disse que estava mal porque estava com o rosto muito abatido de cansaço, lemos na internet que enfiar a cara numa bacia de água gelada com gelo ajudava. Enchemos duas. Enfiamos a cara. Por que eu enfiei também? Não sei, definitivamente eu não estava cansada como ela. Ela vestiu a roupa igual a de todas as madrinhas, o sorriso mais bonito e foi com a gente.

Posou pra fotos, dançou horrores e mais tarde chorou de novo, mas de emoção, de alívio, de gratidão… não sei, mas era um choro bonito. O filho dela tava no meio de uma roda de amigos, a gente cantava e dançava Beatles e o filho dela também. Os afetos dela em volta daquele pingo de gente que tinha acabado de aprender a andar jogando uma enxurrada de amor. Todo mundo ria praquele serzinho pequeno, ela chorava e sorria ao mesmo tempo. Eu hoje acho que entendo que era um choro de orgulho dele, sim, por já ser uma pessoa sociável que participa dos momentos, mas orgulho também da própria jornada.

Ela estava ali, mesmo querendo deitar por 5 dias sem interrupção. Ela tava na festa e tinha que pensar na soneca dele, na alimentação, na hora de ir pra casa, no calor, na fralda… onde eu tava quando ela precisava equilibrar esses pratos todos? Dançando com um copo de bebida na mão, talvez cantando Hey Jude? 

O casamento acabou cedo, a noite foi de pizza, cantoria e madrugada adentro. EU SEI que ela precisava de todo e qualquer minuto de sono, mas ela colocou o filho pra dormir e foi ao nosso encontro. Ela também precisava de si mesma, precisava pertencer. Quanto tempo minha amiga se sentiu deslocada, inapropriada ou desajustada quando olhava nossa vida social com um bebê nos braços? Sempre fui fã dessa minha amiga, hoje sou ainda mais, que bonito foi presenciar aquela sede de viver, de se redescobrir, de ser mãe e ainda mulher. Amiga, me desculpa, eu não tinha a menor ideia das profundezas daqueles seus sentimentos. Me orgulho muito de você, você me inspira a ser uma mãe melhor e uma mulher mais dona de mim.

(sobre ela, no dia do casamento dela)

Morrer é escroto

To-da vez que eu sou impactada pela notícia da morte de alguém, eu fico muito brava. Antes de ficar triste, fico brava. Como assim morreu??? A pessoa nem buscou a roupa na lavanderia, tinha deixado a pizza de ontem na geladeira pra comer na volta, teria apresentação na escola do filho semana que vem. Como assim morreu??? Mandou um “depois te ligo” ao recusar a ligação do melhor amigo, ficou de levar a sobremesa pro almoço de família no domingo na casa dos pais. Pra que mandou os documentos do imposto de renda, pagou todas as contas no último dia 5 e não faltou nenhum dia na academia essa semana? Morrer tinha que ter hora marcada, pra dar tempo de dizer quem fica com a coleção de carrinhos e quem fica com os discos, pras pessoas saberem que o que não foi dito precisa ser dito até sexta-feira, 15h34, caso contrário vai ficar pra outro plano ou outra vida. Tinha que ter hora marcada pra saber a hora de pedir demissão e parar de adiar encontros e coisas que fazem o coração bater mais rápido. Dane-se o emprego que só serve pra pagar contas, se a gente souber quais serão as últimas contas a serem pagas, a gente organiza melhor isso aí. Se a gente souber quando os nossos se vão, a gente ajusta o calendário, tenta deixar aquela semana livre, tenta adiantar a data do casamento, faz uma festa de arromba 15 dias antes pra garantir que o estoque de lembranças vai estar bem farto quando não der mais pra criar nenhuma nova.

Aí sempre tem alguém pra dizer “viva todo dia como se fosse o último” como remédio pra essa sensação de frustração quando o último dia chega sem aviso, mas meus amigos, não dá pra viver todo dia se fosse o último. Se meu último dia fosse semana que vem, eu não pagaria mais nenhuma conta, largaria o emprego, ignoraria os prazos, tiraria dois dias pra falar pra todo mundo o quanto amo, desligaria despertador, meu filho ficaria até lá sem ir pra aula pra eu ficar cheirando ele dia e noite, compraria passagens só de ida, não lavaria a louça nem a roupa, passaria tudo no débito. Como é que pode ser possível viver todo dia como se fosse o último se a gente vive nessa eterna lista de afazeres tentando dar check no máximo de coisas pra não acumular no dia seguinte? Não dá pra viver como se fosse o último dia enquanto a gente estende a roupa no varal, faz o almoço, emenda uma reunião na outra e tem que parar pra fazer a contabilidade do mês.

A gente pode sim tentar não demorar tanto pra fazer o que ama, falar o que quer e sente pros nossos afetos, tirar o melhor proveito dessa vida, mas a gente não tem como viver todo dia como se fosse o último, o sistema não deixa e se todo mundo entrar nessa dinâmica, o caos se instala, a praia lota, não aparece ninguém pra trabalhar, as passagens acabam, ninguém se organiza. Por isso a gente deveria ter data de nascimento e de morte, acho sim, aí o cronograma a gente ajustava bonitinho. “Po, você só vai morrer daqui 29 anos, fulano morre mês que vem, não vou na sua festa, tá? Depois a gente marca, agora preciso ir com ele na cachoeira que íamos quando crianças”. Fácil? Não seria fácil, mas a gente deixaria menos pontas soltas por aí e o arrependimento bateria menos.

“Hariana, aceita, morrer é parte da vida, natural, nossa única certeza”. Ok, pode ser, mas ainda assim, morrer é escroto.